Estou plenamente convencido de que a utilização de um título como este para o que a seguir pretendo expor é completamente inusitado e à primeira vista não é usual e não faz qualquer sentido. No entanto, entendo que a experiência pela qual passei, e já aí o acurado leitor poderá perceber que se trata de um caso prático da vida, tem profunda correlação com um texto enfatizado por Jesus quando se refere à simplicidade da vida e da fé, e de como as crianças vivem isto. Não se trata de um texto científico apinhado de referências ou de uma experiência transcendental. Nada disso. É apenas um relato honesto daquilo que vivi e de como esta experiência me motivou a escrever este pequeno ensaio. Mas então, o que é isto simplicidade da fé? E o que o tal do “mistério do buraco do túnel da galinha” tem a ver com isso?
Trata-se de uma das experiências que vivi em Gera, cidade do leste da Alemanha próxima a Jena e Leipzig, e que até a queda do Muro de Berlim pertencia à parte comunista. Há nesta cidade um parque muito bonito que se chama Hofwiesenpark, e neste parque há um brinquedo despretensioso que me trouxe uma radical experiência a respeito da fé e de como confiar em Deus. Sim, essa experiência eu não vivi dentro de uma igreja, temperada por um forte conteúdo emotivo ou por qualquer apelo sensacionalista que muitos de nós, muitas vezes, somos expostos. Foi assim simples, despretensiosa, ordinária, tão regular como beber uma xícara de chá, sentar-se à beira do Guaíba para presenciar o pôr-do-Sol ou ouvir na TV algum comentário sobre à oscilação da economia mundial.
Mas voltando à experiência, o brinquedo era chamado por nós de “Túnel da Galinha”. Não lembro de haver um nome específico no parque para ele, mas ficou muito conhecido pelos brasileiros que passaram 3 meses na Alemanha como eu, e especialmente pela minha filha de 3 anos de idade à época. Trata-se de uma galinha de madeira de mais ou menos 4 metros de altura, por mais ou menos 3 de largura construída sobre uma base de concreto alta e grande, e onde há diversos túneis de madeira, metal e concreto para se entrar, engatinhar ou escorregar. É um brinquedo simples, não há nada de mais nele, mas que nas tardes ensolaradas do quente verão que passamos era divertimento para muitas crianças e alguns adultos.
Numa daquelas tardes, depois de dois meses de estada, eu, minha mulher e minha filha fomos fazer um passeio no parque e passar um tempo no túnel. Por diversas vezes ensaiei entrar no brinquedo mas sempre voltava atrás depois de andar trinta ou quarenta por cento do caminho, tragado pelo meus medos claustrofóbicos e ansiedades muitas vezes paralisantes. Muito embora elaborasse racionalmente que se tratava apenas de uma experiência divertida, era difícil convencer o meu cérebro e todas as minhas experiências traumáticas de que aqueles menos de 10 metros ou 4 segundos de túnel a ser vencido não me causariam dano algum. A leve perspectiva de ficar entalado, isolado do mundo, preso, sem poder sair, causava-me desconforto, um certo pânico e ansiedade. A ausência de controle sobre o meu corpo pelo simples fato de deixá-lo arrastar-se pela gravidade soava impensável, quase me tirando completamente o ar. Uma completa sensação de sufocamento e de ser cercado e cerceado pela escuridão. E se der errado? Deu certo para os outros, mas isso não quer dizer que dará certo comigo, pensava.
Mas não é isso exatamente o que sentimos quando realmente colocamos nossa fé à prova, ou melhor, quando ensaiamos em, de alguma forma, fazer opções de fé na nossa vida? Não somos assolados pelos mesmos temores quando decidimos em não mais nos salvarmos pelos nossos próprios esforços?
Aqui vale uma explicação. Obviamente existem planos ou esferas de decisões. É claro que precisamos de um mínimo de esforços para questões como comer, beber, vestir, trabalhar e que dependem de uma ação e intervenção direta. Não podemos esperar que a “providência” materialize a comida em frente à nossa boca a fim de satisfazer uma necessidade vital, mesmo que já tenhamos visto este exemplo na vida do profeta Elias (não podemos esquecer que se tratava de uma ordem direta e expressa de Deus). O que não devemos fazer é “morrer” de preocupação por causa dessas coisas [veja o que está escrito no Sermão do Monte], como se o mais importante de tudo fosse a satisfação das nossas necessidades. Não é?!
No entanto, quando refiro-me a “salvação pelos próprios esforços”, refiro-me a diretivas de vida. Escolha de valores. Razões para viver e lutar. Propósitos. Saiba você ou não, queira você ou não, a sua vida é guiada pelas escolhas que você faz com base em valores nos quais você acredita. Estes valores traduzem quem você é e no fundo determinam o espectro de esperança em que está alicerçada a sua vida. Alguns depositam sua esperança na própria racionalidade, outros na racionalidade da ciência, muitos no estado, outros em ideologias, alguns em dinheiro ou propriedades, outros na igreja e alguns em uma nova ordem mundial que irá “restaurar” todas coisas. Entretanto, tudo isso pode se traduzir na crença racional de que o homem é salvador do próprio homem. De que o homem é capitão e mestre do seu próprio destino. O projeto de emancipação do homem moderno a todo vapor. Soa bonito, não?
É incrível como todos estes pensamentos e estas crenças têm o propósito único de autopreservação. E não falo somente em relação às nossas reações instintivas mas de todo o leque de esperança que relatei. É característica de todo ser humano. Pense no quanto é importante para você, por exemplo, o seu emprego, a sua casa, o seu diploma, o seu espaço, o seu conhecimento e inteligência, o seu esclarecimento, os seus recursos, e que as decisões que você toma têm a ver exatamente com a preservação desta identidade que você desenvolveu ao longo de sua vida. Perder isso, muitas vezes, traduz-se na perda da própria identidade. Não é por acaso que cada vez mais se vende no mundo antidepressivos e ansiolíticos [são as drogas controladas mais vendidas no Brasil]. Há um crescente exército sob o controle de drogas químicas. No ambiente acadêmico ou escolar também é muito comum o chamado “doping intelectual”, onde os estudantes, a fim de suportar toda a pressão por resultados e performance, se utilizam de expedientes químicos para melhorar a concentração e memorização. Alguma coisa vai muito errada no mundo, não?
É exatamente neste ponto que voltamos ao “túnel da galinha”. Jogar-nos no vazio da fé e da experiência de acreditar em um Deus relacional é como a sensação de se jogar e se deixar ser levado pela gravidade ao longo do túnel. É simples, mas aterradora. É simples porque a fé é assim lúdica, como quando éramos crianças. Para a minha filha foi assim… fácil: divertimento e aprendizagem. Para ela, entrar comigo no túnel e deslizar por aqueles 10 metros foram fascinantes. Ela estava com o pai. Não sei porque muita gente insiste em transformar tudo isso em rígidos códigos de moralidade e em fardos que são tão difíceis de carregar. Na verdade até sei. Lembra da autopreservação? Elas também estão envolvidas nos mesmos esquemas de tentarem se salvar por seus próprios esforços.
Mas enfim, a fé é um ato simples. Uma atitude. Uma decisão em desfavor à autopreservação. É uma compreensão da própria limitação e de reconhecer que em nós mesmos não teremos ou alcançaremos as respostas que precisamos para compreendermos o sentido da nossa própria existência.
Mas ao mesmo tempo é aterradora, porque é um jogar-se. Um jogar-se sem nada “concreto” nas mãos, sem controle e sem salvação. Mas não é um jogar-se em qualquer coisa ou em qualquer sentido. É jogar-se nos braços de um Deus amoroso que já fez tudo para a nossa salvação. É o confiar que as coisas vão se comportar exatamente como elas devem se comportar, porque aquele que criou todas as coisas está no controle de todas as situações. Difícil, não?
Eu me joguei e me deixei ser levado pelo túnel. Foi uma experiência incrível e libertadora. Assustadora e divertida. Que me levou a túneis maiores e a experiências mais desafiadoras que me fizeram crescer e me sentir livre de verdade.